21/11/2024

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DANIEL LUDWIG. UM SONHO CHAMADO PROJETO JARI.

Denominação dada ao empreendimento econômico desenvolvido em caráter privado, a partir de 1967, pelo empresário norte-americano Daniel Keith Ludwig na região amazônica. Localizado na confluência dos rios Jari e Amazonas, abrangendo terras do estado do Pará e do então território do Amapá, o Jari foi planejado para funcionar como um complexo econômico de grandes dimensões, envolvendo atividades industriais, agrícolas e de extração mineral e vegetal.

Ao iniciar suas atividades no Brasil, Daniel Ludwig era detentor de uma das maiores fortunas do mundo e comandava um império empresarial espalhado por mais de vinte países. Suas iniciativas empresariais, iniciadas no ramo da construção naval e posteriormente diversificadas, notabilizavam-se pelos altos volumes de capital investido e pela ousadia em projetos de engenharia, como as obras de dragagem e abertura do rio Orenoco, na Venezuela, ao tráfego oceânico. O Projeto Jari foi considerado, contudo, o maior de seus empreendimentos, devido aos altos riscos de um investimento de grandes proporções numa região isolada da floresta amazônica.

Os negócios de Ludwig no Brasil tiveram início a partir da aquisição em 1967 da Empresa de Comércio e Navegação Jari Ltda., possuidora de extensas propriedades na Amazônia. Sob seu controle a empresa foi reestruturada, originando a holding Jari Florestal e Agropecuária Ltda., que reunia as inúmeras empresas de Ludwig na região. Esse complexo era gerenciado pela norte-americana Universe Tankship Inc., por sua vez subordinada desde 1979 ao Ludwig Institute for Cancer Research, entidade de direito privado com sede na Suíça.

O exato dimensionamento do território ocupado pelo Jari foi sempre dificultado pela complexidade que envolve a legalização de terras naquela região. Legalmente, Ludwig conseguiu comprovar sua propriedade sobre cerca de um milhão e seiscentos mil hectares de terra, entre títulos de propriedade plena, títulos de aforamento e títulos de posse legitimáveis. O empresário reivindicava, no entanto, o direito de propriedade sobre uma área ainda mais extensa, por ele estimada em torno de três milhões de hectares.

A principal atividade prevista no início do Projeto Jari foi a extração e produção de madeira destinada à fabricação de celulose. Para isso, cem mil hectares de floresta nativa foram reflorestados com duas espécies vegetais importadas: a gmelina arborea e o pinus caribea. No setor agropecuário, desenvolveu-se a maior área contínua de cultivo de arroz do mundo, além da criação de milhares de cabeças de gado. No setor de mineração, destacou-se a extração de caulim, além do domínio sobre importantes reservas de bauxita, minério de ferro, quartzo, calcáreo e ouro. Para dar sustentação a todas essas atividades, Ludwig construiu uma extensa rede de infra-estrutura que incluía dezenas de quilômetros de ferrovias, centenas de quilômetros de rodovias, um porto e três vilas residenciais.

Para sede do projeto foi fundado, por iniciativa de Ludwig, o núcleo urbano de Monte Dourado, localizado em área pertencente ao município paraense de Almeirim. Até o final da década de 1970, a presença do poder público em Monte Dourado era bastante precária. Em junho de 1978, o prefeito de Almeirim dizia pretender estabelecer uma subprefeitura em Monte Dourado e promover a ligação rodoviária com a sede do município. Ainda em julho de 1979, o ministro do Interior, Mário Andreazza, em visita ao Jari, defendeu a adoção de medidas que efetivassem

a presença do poder público na região. Foi somente a partir dessa época, quando o projeto começava a apresentar problemas financeiros, que Daniel Ludwig passou a reivindicar o estabelecimento de órgãos estatais no interior de suas propriedades.

Maior companhia florestal do planeta e mais extensa propriedade agrícola do mundo pertencente a uma só pessoa, o Jari envolveu um total de investimentos próximo de um bilhão de dólares. Por suas dimensões e por ser controlado por um empresário estrangeiro, foi objeto de inúmeras críticas e denúncias no decorrer de sua existência. Por um lado, foi criticado como um projeto mal concebido e mal dirigido do ponto de vista gerencial; de outro, foi visto por muitos como uma presença estrangeira indesejável no país e identificado como uma ameaça à soberania nacional. Otávio Ianni se referiu ao Jari como “um enclave estrangeiro criado com a proteção econômica e política da ditadura”, caracterizando-o ainda como um produto típico do regime instalado em 1964, que facilitou a abertura da Amazônia aos grandes negociantes de terra e promoveu uma política de concentração fundiária na região.

De fato, durante quase toda a década de 1970 as atividades do Jari foram facilitadas pelo bom trânsito de Ludwig junto ao governo federal. Em 1974, a Jari Florestal obteve o aval do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para um empréstimo de cerca de duzentos milhões de dólares realizado no exterior, destinado à importação de uma fábrica de celulose e de uma usina termelétrica, adquiridas no Japão. Além disso, Ludwig conseguiu que a construção dessas unidades industriais fosse beneficiada com a isenção de impostos, mediante sua inclusão no programa de Benefícios Fiscais às Exportações (Befiex). Essa operação gerou protestos de empresários ligados à Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Indústria de Base e ao Sindicato da Indústria da Construção Naval, que argumentaram que muitos dos equipamentos adquiridos no Japão possuíam similares nacionais.

Ainda na década de 1970, denúncias contra as condições de trabalho na área do projeto resultaram na intervenção de fiscais do governo federal, obrigando Ludwig a promover melhorias nas condições de habitação dos trabalhadores e a cumprir a legislação salarial vigente no país. Por outro lado, os efeitos negativos provocados sobre o meio ambiente pela derrubada de grandes extensões da floresta amazônica motivaram protestos de grupos ambientalistas de várias partes do mundo.

Um outro problema enfrentado pelo projeto dizia respeito à regularização de suas propriedades. Em Marzagão (AP), o Jari estendia seus domínios sobre uma área que superava os limites determinados pela Lei nº 5.709, de 1971, que estabelecia que estrangeiros não poderiam deter mais do que 1/4 da área de um mesmo município, determinando ainda que desse total não mais do que 40% pertencesse a uma mesma pessoa. Diante das denúncias que apontavam tais irregularidades, Ludwig contra-argumentava que na data em que adquirira as terras, 1967, a referida lei ainda não havia entrado em vigor. A questão das reais dimensões territoriais do Jari gerou atritos entre a direção do projeto e alguns órgãos públicos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Grupo Executivo do Baixo Amazonas (Gebam), esse último subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, que promoveram contestações à titularidade das terras reivindicadas por Ludwig. À frente do Gebam, o almirante Gama e Silva chegou a propor ao governo federal que reduzisse em 50% a área ocupada pelo projeto. Em 1974, o Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) produziu um relatório sobre o Jari que, contudo, não foi divulgado na ocasião, só vindo a público em 1979, quando foi publicado pelo jornal Movimento.

No final da década de 1970, com a liberalização política vivida pelo país e o rompimento do sigilo que habitualmente envolvia as decisões sobre o Jari, avolumaram-se as críticas e denúncias contra a atuação de Ludwig no Brasil. Em setembro de 1978, o Movimento e o Coojornal publicaram reportagens que acusavam o general Golberi do Couto e Silva, então chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, e o então secretário particular do presidente, major Heitor de Aquino Ferreira, de praticarem tráfico de influência em favor das atividades de Daniel Ludwig no Brasil. Ainda segundo Movimento, as atividades do Jari eram responsáveis por 37% do déficit comercial brasileiro acumulado entre janeiro e outubro de 1978, cujo valor total alcançava 784 milhões de dólares.

Diante do crescimento do volume de críticas e denúncias contra a sua atuação, Ludwig viu reduzido o apoio oficial que até então dispunha. Essa nova realidade ficou evidente quando em 1978 solicitou apoio do governo para deslanchar uma nova etapa de seu projeto, que previa a duplicação da produção de celulose e a instalação de uma fábrica de papel de imprensa, além de novos investimentos em infra-estrutura que incluíam a construção de uma hidrelétrica. A decisão sobre seu pedido se arrastou até 1980, quando o presidente João Figueiredo estabeleceu condições para aprová-lo, exigindo que a maior parte dos novos gastos fossem realizados no Brasil. Contribuiu para essa decisão a permanência do déficit na balança comercial do país, que o governo procurava combater estabelecendo restrições às importações, bem como a pressão exercida sobre o governo pelos empresários nacionais de bens de capital.

A essa altura, o Jari apresentava constantes déficits operacionais, já que as atividades lucrativas da empresa — reduzidas à extração de caulim, ao cultivo de arroz e à produção de celulose — apresentavam rendimentos inferiores aos que haviam sido inicialmente previstos, incompatíveis com os altos custos envolvidos na montagem e manutenção da infra-estrutura construída.

Em agosto de 1980, Ludwig enviou uma carta ao general Golberi do Couto e Silva, relatando as dificuldades pelas quais então passava o Projeto Jari. Segundo Ludwig, sem o apoio do governo federal o Jari não conseguiria superar suas dificuldades, mesmo que reduzisse ao máximo os seus custos operacionais. Nesse caso, considerava a possibilidade de paralisar as operações do projeto ou transferir o seu controle. Referindo-se à crescente oposição suscitada por sua atuação no Brasil, denunciava “os viciosos ataques públicos e políticos que têm se arrastado por quatro anos” à sua empresa e pedia o fim das pressões exercidas contra as suas atividades.

Em novembro seguinte, Ludwig se viu envolvido em nova polêmica ao tentar transferir a lavra de bauxita que possuía no Pará, classificada entre as de melhor qualidade do mundo, para a Alcoa, outra empresa estrangeira do ramo minerador com atuação no país. Com a transferência, a Alcoa passaria a deter 13% das reservas totais de bauxita existentes no Brasil, contrariando a legislação vigente que determinava que as empresas estrangeiras não poderiam deter mais do que 10% das reservas nacionais de um mesmo mineral. Sob protestos da Sociedade Brasileira de Geologia, a negociação acabou sendo suspensa por ordem do ministro das Minas e Energia, César Cals, baseado em relatório produzido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral.

Diante das dificuldades do Projeto Jari e percebendo que já não poderia contar com o mesmo apoio governamental desfrutado no passado, Ludwig decidiu reduzir os custos do empreendimento, o que acarretou a demissão de milhares de trabalhadores no início da década de 1980. Ao mesmo tempo, o empresário passou a reivindicar que o governo federal assumisse a responsabilidade pela manutenção da infra-estrutura montada pelo projeto e destinasse recursos para custear seus serviços comunitários, como hospitais, serviço policial, escolas e estradas. Diante da negativa do governo em atender tais reivindicações, as relações entre Ludwig e o governo federal ficaram tensas. Na ocasião, o ministro da Indústria e Comércio, Camilo Pena, declarou que o governo buscaria encaminhar iniciativas no sentido de garantir a continuidade do projeto, mas que não agiria intempestivamente. O ministro declarou, então, não ser o Brasil “uma colônia onde um grande empresário pode impor ordens”.

Por conseguinte, e já com mais de oitenta anos de idade, Ludwig iniciou contatos com o objetivo de viabilizar a transferência do controle acionário do Projeto Jari. Em fevereiro de 1981, o empresário brasileiro Augusto Trajano de Azevedo Antunes, após reunir-se com Ludwig em Nova Iorque, anunciou a intenção de reunir um grupo de empresários nacionais para comprar o Jari. Azevedo Antunes era presidente da Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (Caemi) e amigo particular de Ludwig, de quem anteriormente já fora sócio em uma empresa de seguros.

Apesar da aprovação do governo à solução apresentada, o ministro César Cals declarou, então, desconhecer qualquer participação oficial nas negociações, considerando, num primeiro momento, que a nacionalização do Jari se faria com a transferência integral de seu controle acionário para as mãos do capital privado nacional. A evolução dos fatos, no entanto, caminhou em sentido diferente. Em janeiro de 1982, poucos dias antes de ser anunciada oficialmente a transferência do Projeto Jari para as mãos do capital nacional, veio à público a notícia de que o Banco do Brasil participaria do pool de empresas que assumiriam o controle acionário do Projeto. Essa decisão foi tomada após a realização de uma reunião no palácio do Planalto, na qual estiveram presentes Azevedo Antunes, os ministros Leitão de Abreu, da Casa Civil, Delfim Neto, do Planejamento, e Camilo Pena, da Indústria e Comércio, além do presidente do Banco do Brasil, Osvaldo Colin. O ministro Delfim Neto justificou a participação do governo argumentando tratar-se de “um projeto de boa qualidade e de grande futuro”. O governo ressaltava, porém, que sua participação se daria através da transformação do aval concedido ao projeto na época da construção de sua fábrica de celulose em participação acionária preferencial, não estando previstos novos aportes de capital estatal no empreendimento.

Para viabilizar a nacionalização do Jari, foi formado um pool composto por 23 empresários nacionais, liderados por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, que deu origem à Companhia do Jari. A presidência-executiva da nova empresa ficou a cargo do empresário Sérgio Franklin Quintela. Segundo o documento de fundação da companhia, no entanto, a viabilidade do empreendimento seria assegurada com um aporte de capital da ordem de 240 milhões de dólares nos três anos seguintes, dos quais 180 milhões ficariam a cargo do governo federal e o restante por conta dos empresários nacionais que assumiam o projeto.

A transferência do Jari ao capital nacional foi efetivada durante solenidade realizada no dia 25 de janeiro de 1982, no palácio do Planalto, que contou com a presença do presidente João Figueiredo e de diversos ministros de Estado. Durante a solenidade, o presidente da República classificou a operação como “um passo histórico no processo de desenvolvimento do país”, que consolidava, segundo ele, a disposição de seu governo de diminuir “a tutela do Estado sobre a sociedade e a vida econômica do país”. Para Azevedo Antunes, a nacionalização da empresa foi “antes de tudo, um bom negócio para o Brasil, pois sua paralisação vinha comprometendo os interesses políticos, sociais e a própria imagem do país no exterior”. Antunes ressaltou ainda que o episódio demonstrava a coragem do empresariado nacional, que promoveu a nacionalização de uma grande empresa sem o recurso da estatização.

Dos meios oposicionistas e de setores da imprensa, porém, partiram críticas ao processo de nacionalização do Jari. Segundo essas avaliações, o negócio envolveu maior volume de recursos públicos que privados, sem que essa participação de investimentos estatais fosse acompanhada do correspondente controle oficial sobre a empresa. Sérgio Quintela, por sua vez, justificou essa presença do capital estatal no empreendimento argumentando que o processo histórico de formação da poupança no Brasil deu ao poder público um papel dominante no setor, não havendo um mercado ativo de capitais a que se pudesse recorrer. Nos meses que se seguiram à nacionalização, Azevedo Antunes declarou que as dificuldades do Jari só seriam superadas com a ajuda do governo e Sérgio Quintela cobrou investimentos públicos no interior de sua área.

Em agosto de 1982, Sérgio Quintela deixou a presidência-executiva da Companhia do Jari afirmando que a nacionalização da empresa estava plenamente consolidada. Foi então substituído no cargo pelo embaixador Edmundo Barbosa da Silva.

André Couto

FONTES: Estado de S. Paulo (26/10/80, 19/4/81, 6, 22 e 26/1 e 9/7/82); Folha de S. Paulo (9 e 31/1 e 25/3/82); Globo (13 e 15/8/82 e 30/6/83); Jornal do Brasil (21/2 e 12/4/81, 7, 8, 15 e 26/1 e 1 e 10/6/82); Movimento (18/9 e 4/12/78 e 11/6/79); SAUTCHUK, J. Projeto; Veja (25/5/83).